Muito além de passatempos de infância ou momentos de lazer entre amigos, os jogos de tabuleiro têm ganhado espaço como ferramentas terapêuticas poderosas. Em um mundo cada vez mais acelerado e digital, essas experiências analógicas oferecem um respiro: promovem conexão humana, exercitam o cérebro e, surpreendentemente, ajudam a lidar com questões emocionais.
O uso terapêutico dos jogos não é exatamente novo, mas nas últimas décadas tem ganhado mais respaldo científico. Psicólogos, terapeutas ocupacionais, neuropsicólogos e outros profissionais da saúde mental vêm descobrindo o imenso potencial dos jogos de tabuleiro na promoção do bem-estar, na prevenção de transtornos e até no tratamento de condições como depressão, ansiedade e déficits cognitivos.
Neste artigo, vamos explorar como os jogos de tabuleiro podem ser usados como aliados da saúde mental e emocional, seus benefícios comprovados e quais tipos de jogos podem ser incorporados na sua rotina como uma verdadeira forma de autocuidado lúdico.
O que são jogos de tabuleiro terapêuticos?
Quando falamos em jogos de tabuleiro, é comum que venham à mente clássicos como Banco Imobiliário, War ou Detetive. Porém, o universo dos jogos modernos é vasto e inclui centenas de estilos e temáticas — muitos deles com mecânicas especialmente eficazes para estimular habilidades mentais e emocionais.
Os jogos de tabuleiro terapêuticos não são necessariamente jogos criados com um propósito clínico. Na verdade, muitos dos jogos utilizados em contextos terapêuticos foram pensados apenas como entretenimento. O que os transforma em ferramentas terapêuticas é o modo como são utilizados, o contexto em que são inseridos e os objetivos que se busca atingir com sua aplicação.
Assim como a arteterapia se utiliza de atividades artísticas para promover o bem-estar, os jogos podem ser integrados a uma abordagem terapêutica para desenvolver habilidades sociais, cognitivas e emocionais. Quando utilizados de forma intencional, com mediação profissional ou consciente, esses jogos tornam-se verdadeiros aliados da saúde mental.
Base científica: por que os jogos fazem bem ao cérebro?
O cérebro humano adora ser desafiado. Resolver problemas, tomar decisões, formar estratégias e lembrar de informações são tarefas cognitivas complexas que ativam várias áreas cerebrais. Jogos de tabuleiro são, por natureza, repletos dessas demandas.
Diversos estudos apontam que a prática regular de jogos de tabuleiro está associada a benefícios como:
Aumento da reserva cognitiva, o que contribui para um envelhecimento mais saudável do cérebro.
Redução do risco de demência em idosos que se mantêm intelectualmente ativos.
Melhora da função executiva, que envolve o planejamento, a tomada de decisão e o controle de impulsos.
Aumento da memória de trabalho e da flexibilidade cognitiva — essenciais para a adaptação a mudanças e resolução de problemas.
Além disso, ao envolver emoção, interação social e diversão, os jogos ajudam a reduzir os níveis de cortisol (hormônio do estresse) e promovem a liberação de neurotransmissores como dopamina e serotonina, associados ao prazer, ao foco e ao bem-estar.
Benefícios mentais dos jogos de tabuleiro
Os jogos de tabuleiro não apenas divertem — eles também nutrem a mente. Uma partida de jogo pode parecer uma simples atividade de lazer, mas, na prática, envolve uma série de funções cognitivas importantes para o bom funcionamento cerebral. Vamos explorar alguns dos principais benefícios mentais proporcionados por essa prática:
1. Redução do estresse e da ansiedade
Jogar exige foco no presente. Esse estado de atenção plena, ou “mindfulness”, é semelhante ao que se busca em técnicas meditativas. Ao concentrar-se em regras, estratégias e interações, a mente naturalmente se desvia de preocupações futuras ou ruminâncias passadas — dois gatilhos comuns para ansiedade e estresse.
Além disso, a interação social promovida por jogos de tabuleiro libera ocitocina, o chamado “hormônio do vínculo”, que tem efeito calmante e promove sensação de segurança.
2. Estímulo à memória e ao raciocínio
Jogos de estratégia, lógica ou dedução envolvem a manipulação de informações, antecipação de jogadas e a lembrança de padrões. Isso ativa intensamente áreas do cérebro ligadas à memória de curto e longo prazo, bem como ao raciocínio lógico.
Jogos como Codenames, Dixit ou Ticket to Ride são exemplos que desafiam o pensamento estratégico, a memória e a associação de ideias, promovendo uma verdadeira ginástica mental.
3. Melhora da concentração e da atenção
Para vencer uma partida, é necessário estar presente e atento a cada detalhe. A manutenção da atenção sustentada é uma habilidade cada vez mais difícil em tempos de excesso de estímulos digitais — e os jogos de tabuleiro oferecem um “exercício” eficaz para fortalecê-la.
Jogos com regras claras, turnos bem definidos e mecânicas envolventes contribuem para treinar a concentração e a disciplina mental, especialmente em crianças e adolescentes.
4. Aumento da autoestima e da sensação de competência
Ganhar um jogo pode parecer trivial, mas para muitas pessoas representa uma experiência de conquista e validação. Até mesmo jogar e aprender novas regras pode gerar um senso de domínio e autossuficiência.
Esses pequenos sucessos acumulados durante os jogos têm impacto direto na autoestima e na percepção de capacidade, especialmente em indivíduos com depressão, baixa autoconfiança ou em processo de reabilitação emocional.
Benefícios emocionais e sociais
Além dos ganhos cognitivos, os jogos de tabuleiro são ferramentas valiosas para o desenvolvimento e fortalecimento das habilidades emocionais e sociais. Em um mundo onde o contato humano está cada vez mais mediado por telas, criar momentos de interação face a face é quase terapêutico por si só.
1. Promoção da empatia e da escuta ativa
Jogos colaborativos ou narrativos estimulam a troca de ideias, a escuta do outro e o entendimento de diferentes perspectivas. Em jogos como Dixit ou Rory’s Story Cubes, por exemplo, os participantes são convidados a interpretar imagens, contar histórias e mergulhar na imaginação alheia.
Essa dinâmica favorece o exercício da empatia, pois cada jogador aprende a entender o ponto de vista do outro, a interpretar emoções e a respeitar diferenças — habilidades fundamentais para a saúde emocional.
2. Fortalecimento de vínculos familiares e sociais
Em uma era onde o convívio familiar pode ser superficial ou fragmentado, sentar-se à mesa para jogar cria um momento de qualidade, descontração e proximidade genuína.
Jogar em família, entre amigos ou em grupos terapêuticos proporciona um espaço seguro para interações saudáveis, onde o riso, o desafio e a colaboração ajudam a construir memórias afetivas positivas.
3. Desenvolvimento da paciência e tolerância à frustração
Nem sempre se vence, e isso é ótimo. Aprender a perder — ou a lidar com regras desfavoráveis — é parte fundamental do crescimento emocional. Jogos ensinam, de forma lúdica, a aceitar frustrações, administrar a competitividade e desenvolver o autocontrole.
Em contextos terapêuticos, essa habilidade pode ser especialmente útil para pessoas com dificuldades de autorregulação emocional ou impulsividade.
4. Promoção da cooperação e do trabalho em equipe
Jogos cooperativos, onde todos os participantes jogam juntos contra um desafio comum, são ideais para treinar habilidades de comunicação, tomada de decisão conjunta e solidariedade.
Títulos como Pandemic, The Mind ou Hanabi são exemplos excelentes para desenvolver o senso de grupo, a escuta e o apoio mútuo — qualidades indispensáveis para relações humanas mais saudáveis.
Jogos de tabuleiro em contextos terapêuticos
A prática terapêutica com jogos já é realidade em muitos consultórios e instituições. Abaixo, alguns contextos nos quais os jogos vêm sendo utilizados com excelentes resultados:
Psicologia clínica
Terapeutas utilizam jogos como ferramenta de acesso ao mundo emocional de crianças, adolescentes e adultos. Através da observação das reações durante o jogo — como tolerância à frustração, manejo de regras, reações à perda ou à vitória — o psicólogo pode compreender padrões emocionais e trabalhar questões importantes.
Além disso, os jogos servem como ponte de diálogo, especialmente com pacientes que têm dificuldade de verbalizar sentimentos.
Terapia ocupacional
Na terapia ocupacional, jogos são usados para desenvolver habilidades motoras finas, atenção, planejamento e organização. Também são ferramentas úteis para promover autonomia e participação social em indivíduos com deficiência, autismo ou em reabilitação física ou neurológica.
Reabilitação cognitiva e neuropsicologia
Pacientes com comprometimentos cognitivos — como AVC, TDAH, Alzheimer ou outras demências — podem se beneficiar de jogos que estimulam áreas específicas do cérebro.
Jogos de sequência, categorização, associação ou construção são escolhidos conforme o objetivo terapêutico, promovendo ganhos significativos na atenção, memória e raciocínio.
Terapia para idosos
Jogos de tabuleiro são excelentes alternativas para manter o cérebro ativo na terceira idade. Eles ajudam a manter conexões sociais, reduzem o isolamento, previnem o declínio cognitivo e promovem um sentimento de pertencimento e propósito.
Exemplos de jogos com potencial terapêutico
A seguir, uma seleção de jogos com potencial terapêutico, divididos por categorias:
🎯 Jogos de estratégia e lógica
Azul: estimula planejamento espacial, atenção e tomada de decisões.
Ticket to Ride: trabalha memória, organização e raciocínio.
Catan: promove negociação, estratégia e pensamento lógico.
🧩 Jogos cooperativos
Pandemic: exige comunicação, cooperação e planejamento em grupo.
The Mind: desenvolve sincronia, percepção do tempo e empatia silenciosa.
Forbidden Island: ideal para desenvolver trabalho em equipe e tomada de decisões sob pressão.
🎭 Jogos narrativos e de expressão
Dixit: promove criatividade, interpretação emocional e empatia.
Rory’s Story Cubes: estimula a imaginação, a comunicação e a construção de narrativas.
Histórias em Construção: ótimo para uso terapêutico com crianças e adolescentes.
🃏 Jogos clássicos e acessíveis
Uno: trabalha atenção, memória e raciocínio rápido.
Xadrez: clássico do pensamento estratégico, ótimo para foco e paciência.
Jenga: excelente para coordenação motora fina, autocontrole e diversão.
Como introduzir jogos na rotina como autocuidado
Incorporar jogos de tabuleiro ao dia a dia pode ser uma forma simples e eficaz de promover saúde mental. Veja algumas dicas para começar:
Escolha jogos compatíveis com seus interesses e tempo disponível
Há jogos curtos, longos, simples, complexos, para dois ou mais jogadores. Comece com jogos fáceis de aprender e com mecânicas que despertem curiosidade.
Crie momentos regulares para jogar
Reserve um dia da semana para um momento de “desconexão digital” e conexão humana com jogos. Pode ser uma noite de jogos em família, com amigos ou até mesmo sessões solo — sim, há jogos pensados para uma pessoa!
Use os jogos como prática de autocompaixão
Permita-se errar, aprender, recomeçar e, acima de tudo, se divertir. O foco não precisa estar em ganhar, mas sim em aproveitar a experiência.
Compartilhe a experiência
Convide amigos ou familiares para jogar com você. Jogos são pontes de afeto, e compartilhar essas experiências pode fortalecer laços e trazer alegria genuína.
Conclusão
Os jogos de tabuleiro, muitas vezes vistos apenas como passatempos, revelam-se ferramentas poderosas de cuidado com a mente e o coração. Comprovadamente benéficos para o cérebro, eles também ensinam sobre convivência, resiliência emocional e empatia — tudo isso de forma leve, lúdica e prazerosa.
Incorporar os jogos ao cotidiano, seja em casa, na clínica ou em grupos, pode representar uma verdadeira revolução na forma como cuidamos da saúde mental. E o melhor: sem efeitos colaterais, com muita diversão e conexão humana.
Então, que tal começar hoje? Escolha um jogo, chame alguém querido (ou desafie a si mesmo) e experimente os efeitos terapêuticos desse universo cheio de possibilidades.